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Este espaço foi criado para reunir conhecimentos acadêmicos e informações relacionadas ao Concurso para ingresso no Instituto Rio Branco.



sábado, 16 de maio de 2009

Nossas Próximas Postagens

Em breve novos fichamentos, resumos e resenhas de livros da bibliografia indicada para o CAD serão aqui disponibilizados. Continuamos buscando o diálogo com aqueles colegas que perseguem com firmeza o caminho da aprovação. Nosso contato preferencial será através do fórum disponível neste Blog (postagem dúvidas, sugestões, etc..., de março deste ano). Nosso e-mail: estudosdiplomaticos@gmail.com
Aguardando os contatos, com um abraço, e votos de Bons Estudos. Antonio Carlos

domingo, 10 de maio de 2009

Subsídios ao Estudo da História Mundial Contemporânea: a Revolução Mexicana






Meu interesse pela História sempre se deu mais pelo conflito do que propriamente pelos períodos ditos “estáveis”. Na verdade defendo que a História se alimenta basicamente das mudanças, das rupturas. E Fernand Braudel estava consciente disto quando formulou sua tese sobre a dialética da duração, o tempo imóvel e as estruturas. Produzido há mais de dez anos, este pequeno texto que hoje me parece ingênuo, à época foi para mim bastante útil, me auxiliando em outros projetos dos quais me ocupava. Como fiz referência no Roteiro de História Mundial sobre a importância desta Revolução, pensei em compartilhar com vocês estas achegas, esperando que de alguma forma elas auxiliem seu estudo de História Mundial. Com um abraço!


ACHEGAS AO ESTUDO DA REVOLUÇÃO MEXICANA
Antonio Carlos Figueiredo

No México de 1910, camponeses ágrafos, despossuídos e até então, de forma geral, mera moldura na história do seu país, pegavam em armas para defender - e em muitos casos reconquistar - e manter as terras que outrora foram morada e meio de subsistência de seus antepassados. No Norte e no Sul do território mexicano dois líderes revolucionários catalizaram por alguns anos os anseios daquele povo simples - que assim como eles - esperavam poder continuar a conservar a alma próxima dos corpos cultivando seus pimentões, cebolas e tomates como haviam feito em dias do passado os seus avós e os avós de seus avós. O presente estudo está voltado para a Revolução Mexicana em sua vertente camponesa, centrando-se à luz da bibliografia disponibilizada, mas porém não esgotada, nas ações realizadas, bem como nas propostas nem sempre factíveis dos seus líderes Emiliano Zapata e Pancho Villa. Estes, dada a autenticidade de suas lideranças, baseadas ( suas ações assim o confirmam ) na sincera disposição de solucionar ao menos parte do drama social do seu povo.



Dentre as várias possibilidades de abordagem da Revolução Mexicana, os movimentos rurais conduzidos por Villa e Zapata possuem o mérito de impor-se por grande riqueza de matizes, seu estudo comparativo por si só já oferecendo ao leitor interessado, farto material para discussão. Para utilizarmos das palavras de Héctor H. Bruit,

" Pela primeira vez na história de sociedades modernas, ao que tudo indica, camponeses pobres, transformados em soldados e em políticos, puderam discutir não só seus problemas individuais e locais, mas também os principais problemas nacionais, visando a construção de uma nova sociedade, mais justa e mais livre. Ignorância, senso comum, princípios simples, algumas teorias mais sofisticadas misturavam-se, mas mantendo o eixo central - a condição do homem " (1988:38)

Condição que os camponeses da região de Morelos viam escapar como água escorrendo entre os dedos, quando reunindo-se no fim do verão de 1909 acordaram, diante do aviltamento da sua condição de sobrevivência, que alterações drásticas seriam necessárias daí por diante, sendo parte destas alterações, a ascensão de lideranças mais jovens - com o que os velhos anciões pareciam concordar plenamente, pois como todos aqueles campesinos "...não ignoravam que iam ter problemas durante os próximos anos " (WOMACK Jr., 1980:15)
Ano a ano, aquela gente simples de Morelos, como de outras partes do México, perdia terreno para as grandes plantações voltadas para a agricultura capitalista que fizera do México ao fim do período de governo do ditador Porfírio Diaz um triste exemplo de como realizar com exacerbação um projeto de concentração fundiária. Os números apresentados para a época são espantosos, demonstrando a concentração fundiária, quase sempre em detrimento do decréscimo da produção agrícola, o que revelava seu teor especulativo . Embora as leis da Reforma Agrária ( ainda em 1856-1857) houvessem iniciado uma transformação na propriedade das terras cultivadas, ferindo inclusive interesses da Igreja, sendo mesmo parte de seus esforços voltados contra terras de propriedade desta, com o propósito declarado de criar uma classe média rural viável no México, o que se passara a partir de então não fora coerente com a idéia da criação desta classe. As terras acumularam-se nas mãos de uma nova aristocracia rural colaboradora de Diaz, que além das terras eclesiásticas, avançara sobre as terras dos índios. Praticamente todas as propriedades que trocaram de posse ao vigor de tais leis haviam, sem prejuízo da própria pressão do mercado de terras ( com sua insidiosa monetarização sobre uma economia de caráter, digamos, quase natural, ou praticamente à base de trocas ) passado às mãos das haciendas e companhias de terras (1). Mas o Sul e o Norte do México, por suas especificidades haviam sofrido diante do projeto de desenvolvimento que se revelava excludente, um impacto diferencial.Tal impacto de certa forma ajuda a determinar em certa medida, a linha de ação, bem como as limitações que o Exército Libertador do Sul (zapatista) e a Divisão do Norte (villista) iriam enfrentar ao longo dos anos da década de 1910, a época reconhecidamente mais crítica do processo revolucionário, período de efervescência rural da Revolução Mexicana. Se esta Revolução fora concebida inicialmente pela facção encabeçada por Francisco Madero como de cunho eminentemente burguês e liberal, a avalanche desenvolvimentista do projeto porfiriano que se abatera sobre o campo, fazendo vítimas os campesinos mexicanos havia criado nestes demandas pari passu ao vilipêndio das condições de subsistência. A Revolução teria que se aprofundar, portanto, posto haver uma força armada relativamente disciplinada em mãos camponesas, ou seja, o transcorrer do processo revolucionário mexicano havia retirado do Estado, cujo governo agora estava nas mãos de Madero o monopólio do uso da força, tornando significativa então da facção à qual Madero representava, a insistência deste em sua entrevista com Zapata, no sentido de desarmar e desmobilizar o Exército Libertador do Sul . Nos anos que antecederam à Revolução, no Sul do México, ampliara-se o mercado para as safras tropicais, bem como para os alimentos destinados aos centros industriais, conduzindo à expansão da agricultura das fazendas e à intensificação da exploração da mão-de-obra do índio. Com efeito, o início das ações de Zapata ocorreria mediante o desafio lançado à uma hacienda que havia iniciado a ocupação de uma terra comunal já preparada para o plantio do milho, fato que ajudou Zapata a receber a partir de então contribuições de outras comunidades campesinas, passando a recuperar terras comunais com o apoio material e humano das várias comunidades, ao lado do apoio - assim acreditavam - da Virgem de Guadalupe de face escura ( sua protetora sobrenatural ). Zapata e seu grupo receberam com o passar das ações, a influência tanto de um grupo camponês possuidor de recursos próprios para o envolvimento no caminho da ação política autônoma, quanto à participação, logo no início de intelectuais dissidentes da face revolucionária urbana do México, Ricardo Flores Magón, o anarcossindicalista, autor do slogan zapatista "Tierra y Liberdad", bálsamo aos ouvidos camponeses que, sublevados lutavam em defesa de suas terras. Zapata iria transformar a redistribuição de terras no objetivo principal do seu movimento. Isto acende na historiografia uma polêmica, quando se comparam os zapatistas com o grupo de camponeses revolucionários do Norte do México, liderados por Pancho Villa. Villa conduzia o segundo núcleo da rebelião rural. Antigo peão numa hacienda, havia sido envolvido no assassinato do proprietário desta, em desafronta à sua honra familiar. Tornando-se tropeiro e bandido, conseguindo no entanto formar uma ampla rede de relações sociais, ao roubar dos ricos para dar aos pobres. Quando é deflagrada a Revolução, logo aderi à sua causa, passando a ser um dos seus líderes mais importantes. Preso, conhece na cadeia Gildardo Magaña, que o ensina a ler e escrever, além de introduzi-lo sobre o programa agrário de Zapata. Após fugir da prisão, ruma para o norte e reúne uma força de três mil homens, núcleo da futura "División del Norte" ( que em fins de 1914, contava com um exército de 40.000 pessoas ). Embora Villa simpatizasse com as exigências do Plan de Ayala dos zapatistas, jamais encetaria uma reforma agrária consistente nas áreas sob seu controle. O historiador Marco Antonio Villa, escrevendo sobre o villismo, esclarece que o comandante da "Divisão do Norte", ao contrário de Zapata, que havia lutado "...fundamentalmente em Morelos " (1992:133), havia ampliado suas ações a vários Estados do Norte, sendo seus soldados camponeses obstaculizados a receberem os benefícios da reforma agrária, ou seja caso viesse uma reforma agrária massiva ad hoc nas regiões controladas por Villa, o imposto de sangue cobrado diariamente nas lutas que os homens da "Divisão do Norte " empreendiam não seria plenamente recompensado necessariamente com as melhores terras. Pancho Villa praticava sobretudo o confisco, não se limitando este ao caso da terra, mas também no tocante às necessidades imediatas do homem, como a alimentação, visto que ao entrar em povoados onde houvesse fome por parte da população local, tratava rapidamente de expropriar excedentes dos depósitos do ricos moradores, para distribuição à população necessitada.






Marco Antonio Villa, prosseguindo na recuperação da memória das ações de Pancho Villa, acaba no entanto por polemizar com historiadores como Hobsbawm e Eric Wolf. No caso de Hobsbawm a crítica de Villa dirige-se à forma pela qual o historiador inglês refere-se no seu livro "Bandidos" à Pancho Villa e seus seguidores. Embora Hobsbawm registre o importante papel desempenhado por Villa e seu exército de "...rebeldes salteadores... "(1976:107), o que na verdade não deixavam de ser em grande medida, (em seu texto - Francisco "Pancho" Villa: uma liderança da vertente camponesa na Revolução Mexicana - Marco Antonio Villa refere-se às expropriações realizadas nem sempre de modo parcimonioso pelos villistas) além de considerar Pancho Villa um caudilho, o que em parte também não deixava de ser, sendo talvez a questão central da polêmica movida pelo razão de Hobsbawm diferenciar o zapatismo do villismo, considerando o primeiro como expressão de uma revolução social, ao passo que ao villismo restaria o papel próximo do banditismo social, sendo Pancho Villa o "...único líder mexicano que tentou invadir a terra dos gringos neste século" (p.108). O que Marco Antonio Villa não parece levar em conta é o próprio teor do trabalho de Hobsbawm, bem como do que este considera ser um "bandido social ", considerando mesmo o banditismo social como elemento precursor das revoluções camponesas de vulto, ou seja, sem banditismo social, sem dúvida uma válvula de escape e expressão de anseios populares, não haveria na mesma intensidade, pela questão mesma do exemplo aos oprimidos das formas de protesto imediatamente possíveis. Outro problema na obra de Marco Antonio Villa estaria na crítica a passagens do trabalho de Eric Wolf , quando este analisa a liderança de Pancho Villa como sendo incapaz de compreender as necessidades políticas e sociais. A barreira maior que Marco Antonio Villa (1992) não consegue transpor seria que em 27 de março de 1915, os delegados de Pancho Villa à Convenção Revolucionária de Aguascalientes haviam chegado a defender direitos tradicionais do século dezenove, da propriedade privada e do indivíduo, contra os radicais zapatistas. Tal fato parecendo confirmar a referência de Eric Wolf ao "...surgimento de uma nova ' burguesia ' dentro do próprio exército do Norte " . (1984: 58)
O encontro histórico dos líderes das duas vertentes camponesas da Revolução Mexicana, ocorrido na Cidade do México em fins de 1914, quando celebraram sua união fraternal, não conseguindo porém criar a máquina política capaz de governar o país, parece ser significativo da incapacidade dos movimentos zapatista e villista de instituirem uma nova ordem no México. Disto iria aproveitar-se a terceira força na Revolução Mexicana: o Exército Constitucionalista, formado pelas alas liberal e radical. A necessidade premente de uma reforma social viável era condição sine qua non a que se viesse quebrar a superioridade de Villa e Zapata, cujos seguidores acenavam com um programa social cada vez mais avançado. Ocupando somente posições periféricas no país, os exércitos constitucionalistas vieram a gozar de vantagens como o controle de recursos estratégicos bem como de portos ligados ao comércio externo, vantagens essas que transformadas em dólares serviam para a compra de armas. Neste sentido, podemos dizer, fazendo coro a Hector H. Bruit que "a derrota da revolução camponesa se deu no campo de batalha, por meio das armas e do assassinato político e não por ser utópica, regionalista e camponesa... " ( 1988:40) . Com efeito, se as vertentes camponesas da revolução não haviam conseguido libertar-se das necessidades imanentes à sua formação social, colocando-se em termos gramscianos, como corrente revolucionária de proposta hegemônica, o que para tanto teria que absorver demandas de grupos burgueses, de trabalhadores urbanos e classe média, isto não fazia irrealizável o projeto camponês, não obstante criasse um impasse 'ad infinitum' no processo revolucionário, dando ensejo a que outros grupos viessem a aproveitar-se de vantagens ocasionais. Enfim, para fazer-mos uso da análise de Octávio Ianni, se a Revolução Mexicana por volta de 1914 possuía uma razoável conotação socialista, acabaria por realizar-se como revolução burguesa (2). Embora Zapata fosse traiçoeiramente emboscado e assassinado em 1919, e Pancho Villa também viesse a ser assassinado numa fazenda de Chihuahua em 1923, após fazer a paz com Álvaro Obregón, sucessor de Carranza, as demandas colocadas pela vertente camponesa da Revolução Mexicana não poderiam ser ignoradas no futuro, cujas provas mais nítidas são os expedientes do 'ejido' e do 'Banco Ejidal '. Na sua fase de institucionalização a Revolução Mexicana não poderia prescindir das figuras de Zapata e Villa, os quais aparecem retratados em "murales", essa magnífica forma de arte, ao lado de figuras burguesas, muitas das quais eles haviam combatido sem tréguas, dados os lados opostos nos quais se colocaram durante aquela revolução.







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NOTAS :

(1) Eric R. WOLF, guerras camponesas do século XX, p.31-34. Esta parte do texto de Wolf realiza análise sintetizada da política agrária sob a ditadura de Diaz.

(2) Um aspecto interessante na análise de Octávio Ianni está na conceituação do Cardenismo como uma espécie de populismo, mesclado com zapatismo, bem como à vinculação da Confederação Nacional Camponesa, Banco Ejidal e outros órgãos como forma de subordinação de camponeses e operários rurais ao Estado, oferecendo a estes presença (real ou simbólica) no Estado Nacional. Ou seja, o que Villa e Zapata não puderam oferecer à sociedade nacional mexicana quando tomaram a Cidade do México e ocuparam o Palácio do Governo em 1914, os burgueses trataram mais tarde - ao menos em ideário - de realizar.

BIBLIOGRAFIA :

BRUIT, Héctor H. Revoluções na América Latina. São Paulo: Atual, 1988.

CÓRDOVA, Arnaldo. La ideología de la Revolución Mexicana: la

formación del nuevo régimen. México: Era, 1973

HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. Rio de Janeiro:Forense-Universitária, 1976

IANNI, Octávio. In: SANTOS, José Vicente T. dos.(Org.). Revoluções cam-

ponesas na América Latina. São Paulo: Ícone, 1985.

WOLF, Eric. Guerras camponesas no século XX. São Paulo: Global, 1985.

WOMACK Jr., John. Zapata e a Revolução Mexicana. Portugal: Edições 70,

1980.

VILLA, Marco Antonio. Francisco "Pancho" Villa: uma liderança da verten-

te camponesa na Revolução Mexicana. São Paulo: Ícone, 1992.

___________________. A Revolução Mexicana. São Paulo: Ática, 1993.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Algumas reflexões sobre Casa-Grande&Senzala e Raízes do Brasil


Olá. Desnecessário seria argumentar a importância destas duas obras para o CAD. Segue abaixo uma breve ficha que elaborei, para nos auxiliar na leitura "incontornável" destas duas grandes obras. Um abraço a todos!

Casa Grande&Senzala e Raízes do Brasil tentativas de uma síntese culturalista do Brasil, ambos concebidos na década de 1930, inscreviam-se em um contexto no qual se acenava com a chance de um novo tipo de sociedade, cujo desenvolvimento econômico fosse paralelo à incorporação de novos contingentes da população à cidadania.
O processo de transformação sofrido pela sociedade brasileira de então, já havia demonstrado os perigos a que se estava exposto com a aproximação dos hábitos patriarcais dos centros do poder, fato gerador do estado cartorial e do coronelismo, características básicas da república oligárquica encerrada com o movimento de outubro de 1930. No entanto, se os móveis societais conduziam-se em um ambiente de ebulição, a preocupação que direcionava seus autores, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque não poderiam ser mais diversas.
Com efeito, em relação às suas origens sociais, assim como quanto às suas trajetórias de vida encontraría-mos também significativas diferenças em seus autores, ao que poderíamos colocar um Freyre, filho de tradicional clã da elite pernambucana. Esta classe latifundiária sofrera os impactos da decadência econômica nordestina – cujos efeitos faziam declinar inexoraravelmente o peso dessas elites no conjunto da nação; poderíamos então a este Freyre, contrapor um Sérgio Buarque paulistano, que crescera assistindo às transformações tão rápidas quanto radicais, de uma São Paulo que tornava-se metrópole, com seus emblemas de modernidade, com sua formação social diversificada pela urbanização acelerada, num mosaico humano de matizes caldeantes.
Ambos, Freyre e Sérgio ( que apesar das divergências acadêmicas foram na mocidade companheiros de boemia no Rio dos anos 20, onde visitavam o poeta Manuel Bandeira e bebiam ao som da música de Pixinguinha ) passariam sob condições diversas e em épocas próximas, uma profícua estadia no exterior, fator de expressiva influência em suas obras.
Em articulada coerência com suas visões de mundo, iriam produzir Casa Grande&SenzalaCasa e Raízes do Brasil, duas tentativas de explicar o Brasil, no clima da década de 30, que passam a partir de agora, a ser efetivamente estudadas.
Em Casa Grande&Senzala, Freyre analisa o Brasil sempre a partir de um passado criteriosamente selecionado, ou seja, o Brasil que Freire deseja nos mostrar é algo que há muito já deixou de ser, de forma que em certos momentos de sua obra, esta referência ao passado circula pelas fronteiras da nostálgica melancolia.
Isto fica mais claro quando Freyre em seu capítulo sobre o colonizador branco demonstra o seu inconformismo diante da decadência de ramos familiares de tradicionais famílias nordestinas, ascendência de potentados que assistiria a areia da ampulheta da história fazer dos seus descendentes, no rastro da desagregação econômica nordestina, meros lacaios, desprovidos do antigo verniz aristocrático, alheios a qualquer sombra que fizesse lembrar a dignidade familial do passado, o que pela lavra de Freyre adquire alto teor de dramaticidade.
Para adentrarmos Casa Grande&Senzala, acredito que não devemos aceitar a sugestão do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que nos orienta a pular os prefácios "...porque os prefácios são tão cabotinos que podem dar uma impressão menos à altura do que o livro propriamente é." (1993: 23-4).
Portanto, se o nosso intuito for o de tentar uma confrontação do Brasil pintado em cores por Freyre, ao Brasil diagnosticado por Sérgio, acreditamos que o melhor caminho será direcionar a visão na obra de Freyre, a partir do Prefácio - importante pois escrito pelo próprio autor para a primeira edição. Igualmente fundamentais seriam o capítulo primeiro, que trata das características gerais da colonização portuguesa do Brasil e da consequente sociedade por esta aqui formada, sendo igualmente importância o capítulo terceiro, que tratando do colonizador português, deixa em muito implícito o que o historiador José Carlos Reis definiu em recente ensaio como "O Re-Elogio da colonização portuguesa ", pois o elogio original já havia sido feito por Varnhagen nos anos 1850.
Acreditamos revestir-se de algum interesse algumas considerações a respeito do que seria este re-elogio. Numa década na qual o mundo sob o peso de uma Grande Depressão Econômica assistia ao sucesso de uma ideologia totalitária e racista como o nazismo, que chegava ao poder em 1933 - mesmo ano do lançamento de Casa Grande&Senzala - Gilberto Freyre nos chamará atenção ao contar, sob a forma de epopéia grandiosa, a história de portugueses, negros e índios que haviam construído uma sociedade dinâmica e original. A perspectiva de Gilberto Freyre era portanto cultural, numa época em que boa parte dos homens, incluindo-se aí brasileiros de renome, debatiam-se em idéias de superioridade racial, e isto pode explicar além de outros fatores, a acolhida internacional ao livro de Freyre, pela necessidade em termos internacionais da convivência entre "diferentes".
Ainda como fatores de sucesso, poderia ser mencionado o discurso formulado por Freyre ao longo do texto, que fazia as elites respirarem aliviadas; neste discurso, o Brasil não estaria fadado ao insucesso por causa das consequências da miscigenação, e Freyre encontrará na hiponutrição a incapacidade física do brasileiro. Nesta vertente de raciocínio, a miscigenação não impediria ao " jabuti " brasileiro o acesso à "Festa do Céu" promovida pelas nações industrializadas.
Ligando-se a todos estes fatores estaria o ponto de vista histórico-metodológico de Freyre, revelado parcialmente no Prefácio à Primeira Edição. Neste, Freyre expõe as origens de suas preocupações e a partir delas suas escolhas metodológicas, condicionadas pela influência em sua formação do professor Franz Boas. Se Freyre numa reflexão sobre a sua época de estudante nos Estados Unidos acreditava que tudo dependesse dele e de sua geração para a resolução de questões seculares, sendo que nenhum dos problemas o inquietava mais à época que o da miscigenação, seriam então os estudos de Antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro iriam revelar a Freyre o negro e o mulato no seu justo valor, fazendo-o aprender a considerar como fundamental a diferença entre raça e cultura, a discriminar as relações puramente genéticas das influências sociais, da herança cultural e de meio. Emblemático como exemplo das preocupações de Freyre em sua estadia como estudante na América seria um fato que o impressionou, permanecendo como uma interrogação em sua lembrança, que ele cita em Casa Grande&Senzala, e que vale a pena reproduzir:

"Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais - mulatos e cafuzos - descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole do Brooklyn. Deram-me a impressão de caricaturas de homens. E veio-me à lembrança a frase de um livro de viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: 'The fearfully mongrel aspect of most of the population '. A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes "

Freyre, após seus estudos com Boas, passaria então a considerar a influência que no entanto para ele nem sempre será preponderante, da técnica da produção econômica sobre a estrutura da sociedade, com a devida influência na caracterização da sua fisionomia moral. E sendo uma obra de re-elogio da colonização portuguesa no Brasil, Freyre tem em mãos a incômoda tarefa de explicá-la.
A Coroa portuguesa à época que iniciava efetivamente a tomada de posse de sua Colônia americana, estava visivelmente mais interessada na chamada "Carreira das Índias", o rendoso e aventureiro tráfico de especiarias, o que assoberbava sua diminuta população, ceifando vidas jovens nos vários quadrantes de mar. Além de tudo isto, não oferecia o Brasil, além do pau-de-tinta quase nada que merecesse troca compensatória no mercado europeu. O destino da Colônia enquanto forma de exploração econômica estaria dado por vários determinismos geográficos, o principal deles, além da latitude, a existência de terras propensas ao plantio da cana-de-açúcar, processo produtivo conhecido de longa data pelos portugueses em suas ilhas do Atlântico.
O açúcar, produto então de colocação certa nos mercados da Europa, surgia enquanto potencialidade econômica.
E Freyre nos apontará que, apesar dos determinismos geográficos da colonização, o português a realizou com sucesso. Não possuindo orgulho de raça, não segregou, mas miscigenou-se, dadas as necessidades do colono branco, pela escassez de mulheres brancas, em constituir família, dentro das circunstâncias e sobre a base da miscigenação, no que Gilberto Freyre defende ter sido uma forma de correção da distância social "entre a casa grande e a mata tropical; entre a casa grande e a senzala." Diante das dificuldades, o português teria se adaptado - e adaptado com sucesso ! Sua única exigência ao compartilhamento da nova terra: o credo religioso.
Seus grandes inimigos para a consecução do projeto colonizador: a má nutrição - axioma da monocultura latifundiária e a sífilis, reflexo por sua vez, da miscigenação associada ao relaxamento dos costumes. Se a monocultura permitiu a viabilidade econômica da Colônia tropical no "Pacto das Trocas" a ela destinado com a Metrópole, a má nutrição minou século após século as gerações da sua primitiva ou potencial robustez. Se a miscigenação, em suma, permitiu a multiplicação dos tipos étnicos semelhantes ao colonizador, a sífilis os depauperou, reduzindo-os nas suas potencialidades, reduzindo-os à caricatura das matrizes primitivas.
Freyre introjeta-se na poeira dos séculos do Brasil colonial lembrando sempre a viabilidade do Brasil, travando assim um diálogo informal entre o presente e o passado. Aponta para a miscibilidade, a plasticidade do português como prova de adaptação e condição do sucesso, afinal, anglo-saxões não miscigenaram-se e apartando-se dos autóctones e suas técnicas disponíveis na América do Norte Colonial,haviam acabado por fracassar.
Neste sentido, Casa Grande&Senzala é uma justificação da conquista e ocupação portuguesa do Brasil. Significativo seria que a própria Casa Grande, enquanto construção arquitetônica teria se adaptado, diferenciado-se do Solar português. Adaptada aos trópicos, a Casa Grande aparece com as especificações necessárias ao cumprimento do seu papel na vida colonial, destinada a resistir tanto às intempéries quanto aos ataques do gentio. Esta construção, transformada em centro político - administrativo e fortaleza, por sua vez, não abrigava mais o português característico da metrópole. Este colonizador, habitante da casa grande com o passar tempo já seria o brasileiro, o miscigenado.
O homem da família rural, capaz de empreender com seus familiares e agregados a colonização daquelas terras tropicais na América. O livro legitima a escravidão. O meio e as circunstâncias teriam exigido o escravo. Neste sentido, a casa grande, completada pela senzala, representaria um todo, um sistema econômico e social de trabalho e produção. Mesmo a religião, com o capelão subordinado ao pater familias, se curvaria aos desígnios expressos pelo colonizador. Com efeito, mesmo os impulsos possessivos manifestados pela Igreja nos princípios da colonização seriam domados, ficando o senhor de engenho dominando quase sozinho a Colônia após a saída de cena dos jesuítas,"...que sentiram, desde o início, nos senhores de engenho, seus grandes e terríveis rivais "(1992:195).
A força concentrara-se nas mãos dos senhores rurais. Forte e dominador, o colonizador português irá no entanto contemporizar com as raças vencidas, ao contrário dos espanhóis e ingleses em seus domínios americanos. Contemporizador e menos cruel na relação com os escravos, não se cansa Freyre de repetir. As condições de colonização aliás, haviam gerado todo um sistema de homizio e abuso por parte dos senhores de engenho, a ponto destes suplantarem a justiça e a polícia, pois o criminoso ou escravo fugido que passasse preso diante da Casa Grande e invocasse proteção do "Coronel", agarrando-se à porteira ou a um moirão de cerca, logo era apadrinhado, livrando-se das iras da lei. Não possuindo orgulho de raça, o colonizador do Brasil iria apoiar-se no critério da pureza da fé.
Não obstante a religião se pautasse pela frouxidão e falta de fervor religioso, a ponto de tomarem-se certas liberdades com as imagens dos santos. A Santo Antônio seriam atribuídos poderes para recobrar as afeições perdidas, pendurando-se para tanto a imagem do santo de cabeça para baixo dentro do poço ou da cacimba, os mais impacientes chegando a colocá-lo dentro de urinóis velhos; São Pedro seria o casador das viúvas e as mulheres velhas; e São Gonçalo do Amarante se prestaria - ou melhor - sua imagem se prestaria a práticas mais livres e sensuais.... O cristianismo português estava imbricado por práticas pagãs.
Freyre pretendera nos contar com olhar nostálgico a face passada de um Brasil ao qual ele pinta com cores alegres, um Brasil idílico formado por uma sociedade original que encontrara o segredo tão procurado da convivência pacífica entre diferentes etnias, colocado nosso autor no alpendre da Casa Grande para apontar ao senhor rural o sucesso de sua obra.
Em suma, se o que nos narra é o passado, Freyre "...quer fazer uma defesa desse passado e impedir ou desacelerar a mudança,... [pois]...o passado brasileiro foi bom, as elites são competentes e democráticas ...[ e Freyre, reformista, no máximo irá propor]...o fim da monocultura, que melhoraria a dieta brasileira, fazendo aparecer uma população sadia e uma inteligência mais vigoroso, menos imitativa. "(REIS,1998:63) . Para o futuro do Brasil, Freyre defende mais continuidades do que mudanças, pois ele é viável e não há ameaças no seu horizonte.
Sérgio Buarque de Holanda pretende justamente mostrar que a colonização do Brasil fora feita por aventureiros em busca da fortuna fácil; e mais, o personalismo dos relacionamentos embutidos no meio rural revelava-se agora uma pesada herança no caminho da formação de uma moderna Sociedade Civil. No entanto ambos, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque incorporam novas metodologias acerca do trabalho que realizaram. Dentro do contexto teórico-metodológico no qual se encontravam, caberiam então algumas palavras.
Até o Séc XIX, predominava nas esferas científicas a idéia de que o conhecimento científico deveria ser plenamente demonstrável. Tal idéia remonta a Descartes e Kant. Houve determinados historiadores que tentaram sem sucesso, a transferência de princípios físico-biológicos ao campo histórico. O historicismo - corrente histórica que se segue ao naturalismo - é desenvolvido a partir de Dilthey: sua importância estaria em ter distinguido, pela natureza de seus objetos e métodos, os conceitos de História e natureza, isto é, ter afirmado a distinção entre as ciências naturais e as ciências culturais, dadas as peculiaridades de seus objetos.
A principal consequência da adoção de uma posição historicista nas ciências culturais seria o redimensionamento dessas ciências numa perspectiva crítica e psicológica. O historicismo, surgido como termo de oposição ao naturalismo, se foi, nos primeiros momentos, mal empregado, teria no entanto num momento posterior, uma retomada do questionamento onde acabam definindo-se três correntes. A primeira delas concebe o historicismo como uma interpretação filosófica alternativa ao naturalismo (Troeltsch). A outra, apresenta o historicismo como fruto de uma revolução dos ocidentais (Meinecke). A última delas, mais radical, partindo do mesmo ponto de vista da anterior, afirma ser o historicismo a pré-condição para qualquer entendimento da realidade.
Quanto às referências teórico-metodológicas, haveriam possíveis semelhanças em Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, e em seu ensaio já referido, José Carlos Reis, citando Costa Lima, nos esclarece que Freire em Casa Grande&Senzala "levou a pesquisa histórica brasileira a uma problemática nova e alemã: a do historicismo de Dilthey, Simmel e Weber, apesar de Freyre em momento algum citar fontes alemãs"(p.35-6). Por sua vez, Sérgio Buarque foi também, mas diretamente, influenciado pela ciências sociais alemãs, posto o contato travado com a chamada "tradição culturalista alemã " haver influenciado ( é difícil precisar até que ponto ), a concepção e realização de Raízes do Brasil ( AVELINO FILHO, 1987: 41), a influência das teorias de Weber, as aulas de Meinecke com seu historicismo.
Avaliar no entanto as influências diretas ou indiretas do historicismo alemão, nas duas obras portanto, "...propõe até hoje problemas para o analista " (MOTTA, 1977: 31). Seria menos então pelas inovações metodológicas, mas principalmente pela elaboração do conjunto de reflexões que atingiria seus pontos mais altos na crise da ordem oligárquica dos anos 1930, que faziam as duas obras à época dos seus lançamentos, farto manancial acerca do caráter nacional brasileiro.
A tese de Sérgio Buarque está direcionada para a necessidade de mudanças. Precisaríamos mudar, e para que consigamos sucesso na mudança, será preciso antes nos conhecer. Passando a conhecer a nós mesmos, poderemos formar uma idéia adequada do Brasil. Dentro desta perspectiva, a procura por nossas raízes nos levará à Península Ibérica, à Portugal. E aí descobrimos, no berço português, o quanto os portugueses são autárquicos, o seu horror pelo trabalho manual. Sua centralização política prematura lhes acarretou certos estigmas, pois não houve no processo a contradição de interesses que possibilitasse à burguesia a tessitura de sua revolução. A convergência de interesses da nobreza e da burguesia, antes sim, realizou um amalgamento de interesses numa simbiose de soluções; concomitante ao enobrecimento do burguês, ocorreria o aburguesamento do nobre.
Sérgio defende que, " apesar de seus autores " (p. 43) , a exploração dos trópicos deu-se. É verdade, sem método nem racionalidade. Aliás, os homens que para cá embarcavam, vinham movidos antes pela perspectiva da aventura do que pela do trabalho, e justiça seja feita aos portugueses de então, estes não diferiam neste aspecto dos ingleses, franceses, espanhóis ou holandeses à eles contemporâneos. Teria sido então o gosto pela prosperidade, eximidos os custos da ética do trabalho ou seja, a ausência da perseverança quase religiosa em sua virtudes, da crença à beira da metafísica da prevalência no triunfo do trabalho; isto não teria lugar no universo mental daqueles homens. Muito mais próximo de suas inclinações estava então a ânsia pelos títulos honoríficos e a possibilidade aberta à alçar posições.
Estes seriam os motivos, fatores determinantes que fizeram aportar nestas terras tropicais aqueles colonizadores. As condições dispostas para a empresa aventureira haviam encontrado em verdade os portugueses como o povo mais bem armado, entre os povos do Velho Continente, para a exploração das novas terras. Sua adaptabilidade quanto às condições encontradas, adotando-se novos hábitos alimentares e de comportamento foram tornando-o a cada passo o que em potencial já se divisara em conquistas anteriores, ou seja, os portugueses revelando-se como o povo mais apto de então à aventura colonizadora. Aventura, pois sem planos pré-concebidos, tateando as possibilidades meio ao sabor do vento ao vislumbrar as perspectivas de uma curta conjuntura.
Assim foi decidido plantar-se gêneros agrícolas tropicais e a ele moldou-se a estrutura fundiária brasileira: a grande monocultura agroexportadora mantida mediante trabalho escravo. O esforço simplificado em relação ao grande lucro almejado sob a sustentação do suor do escravo negro.
O esforço mínimo juntando-se à rotina, à acomodação, ao descompasso. A falta de progresso técnico nas atividades agrícolas, numa simbiose mal digerida do povo autóctone com sua agricultura neolítica. Numa terra fundada sob tais valores, não seria de se esperar evoluções diversas da aproximação do senhor com o escravo, do rompimento das barreiras hierárquicas, do paternalismo , do protegimento, do compadrio, da prática da eliminação das separações raciais ou antes, de qualquer disciplina que as viesse defender. Numa terra na qual todos se desejavam senhores, tendo desde logo a aversão ao trabalho como disseminada, entravou-se no nascedouro qualquer possibilidade de desenvolvimento regular dos ofícios e do comércio.
O desprendimento em relação à profissão praticada, movido pela possibilidade do ganho fácil, inviabilizou, associado à sombra perturbadora do trabalho escravo e ao orbitar da Colônia sobre a propriedade rural, acabou por fazer a cidade prisioneira e dependente do meio rural, uma triste herança por vínculos que culturais, acabam por adquirir sólida persistência.
Numa sociedade formada sob tais bases, onde o personalismo sobressaindo-se nas relações tinha avultado papel, seriam acentuados os caracteres do afetivo, do irracional, do passional, para Sérgio "...exatamente o contrário do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente. " (p.61), sendo significativos os fatos que nossa Independência tenha sido obra de maçons e a República fruto da ação de positivistas ou agnósticos. Não seria por acaso, que Sérgio Buarque observará um 'marco divisório' na abolição do trabalho escravo.
A própria inversão de capitais que se processava na esteira da iminência da extinção da forma servil de trabalho e seus efeitos na economia e interferências na sociedade, representaram portanto saltos qualitativos em período de tempo relativamente curto.
De forma alvissareira Sérgio Buarque enxerga o aumento da influência das cidades e da sua estrutura social mais diversificada em relação ao meio rural, uma possibilidade de minar-se o peso insuportável da herança rural, a qual surgindo como entrave à constituição de uma moderna forma de relacionamento político, obstrui também o pleno desenvolvimento das forças produtivas. Com efeito, se para adentrar-mos ao espaço público comum às modernas sociedades, temos de perder nossa singularidade, não seria o tipo inclinado a relações personalistas o mais apto à ocupar tal espaço, sem que se deturpem as relações no seio deste.
Tal tipo de indivíduo, portador da herança de relações fundadas sob a égide do meio rural e que as transporta para a cidade, com a mentalidade do meio original com toda sua carga de preconceitos, seria o "homem cordial", que procuraria manter sua supremacia ante o social - que a ele incomoda - armado da lhaneza no trato, da hospitalidade, da generosidade. Tudo movendo-se neste tipo, para o desejo de estabelecer um convívio mais familiar nas relações sociais, e como no meio rural, suprimindo as barreiras, estabelecendo intimidade.
Proximidade que submete interesses comerciais à uma prevalecente amizade, que não abre mão de uma religiosidade, desde que a possa manifestar na superfície, sem rigores nem fervor. Em síntese, para Sérgio Buarque, não seria fácil aos detentores das posições públicas de compreenderem a distinção entre os domínios do público e do privado. Isto caracteriza fundamentalmente o que separa o funcionário "patrimonialista" do burocrata, conforme o definiu Max Weber; para o funcionário patrimonialista a própria gestão política apresentando-se como assunto do seu interesse particular, as funções, os empregos e os benefícios que deles obtém referindo-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, no qual prevalecem a especialização da funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.
Apresentado o Brasil de forma sucinta na visão desses grandes estudiosos, colocaríamos agora a demanda em confrontar, ou mesmo associar alguns pontos das obras estudadas. Analisando o passado em suas modificações mais significativas, Sérgio Buarque evita a designação de "marcos históricos" quaisquer que sejam estes; para ele seriam por demais superficiais, "desvios de trajetória" portanto se comparados ao processo demorado e que na época que nosso autor escrevia, julgava este contar com pelo menos três quartos de século. Se retornarmos no tempo, esta data poderia coincidir com os primórdios ou certo ensaio industrial como logo nos vêm à figura de um Mauá, podendo no entanto encontrar a contrapartida na "Lei de Terras" de 1850, que frustrou ou mesmo impediu a constituição de pequenas e médias propriedades rurais, aliás, ao modelo a que referiu-se Varnhagem, citado por Gilberto Freire em sua obra.
Num esforço de síntese, talvez pudéssemos confrontar ainda dois momentos em Casa Grande&Senzala e Raízes do Brasil. Se Freyre olha com melancolia o desmonte do modo de vida levado a efeito durante séculos pela família rural e patriarcal, sofrendo com o esmaecimento de suas antigas linhagens, Sérgio aplaudirá a dilatação da ação das comunidades urbanas em detrimento da restrição das influências dos centros rurais.
Sobre o destino e papel das duas obras, por nós falam seus inúmeros comentaristas. Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo, nos dirá que Casa Grande&Senzala apaixona, sendo um livro onde a vida cotidiana aparece, numa época na qual não era comum demonstrar-se interesse pelo cotidiano, e será Freyre que introduzirá a família, a cozinha e a vida sexual na literatura, uma "revolução, quase copernicana" . O Uspiano Cardoso reserva para Raízes do Brasil no entanto o epíteto de miniatura de pintor. Existe algo mais engrandecedor para uma obra desta natureza e alcance que ser chamada de miniatura de pintor ? Indisfarçando seu elogio à Sérgio Buarque, Cardoso nos dirá ser ele "um pensador radicalmente democrata, coisa que Gilberto Freyre não era " (1993: 27). Sérgio, além de haver distinguido ao procurar nossas raízes ibéricas, a América espanhola da América portuguesa, apontando com as ferramentas da sociologia weberiana a nossa formação patrimonialista, nos faz vislumbrar as brechas de onde possamos pensar uma mudança na forma tradicional de nos comportarmos. Jorge Schwartz, citando Antonio Cândido, faz coro a Cardoso, apontando Sérgio Buarque como "...autor de contribuição que deve ser explorada e desenvolvida no sentido de uma política popular, adequada às condições do Brasil, segundo princípios ideológicos definidos" (1992: 544). Carlos Guilherme Motta (1977) observa traços racistas na obra de Freyre, onde o autor opera com noções de eugenia, branquidão, morenidade; neste sentido, Casa Grande&Senzala seria a materialização da tese na qual estaríamos em um País com poucas barreiras à ascensão de indivíduos pertencentes à classes e grupos inferiores. Em sua crítica à Raízes do Brasil, Motta nos dirá, também fazendo uso de Antonio Cândido, que Raízes do Brasil representou um corretivo à retórica bacharelista da época. George Avelino Filho consideraria Raízes do Brasil "um daqueles fragmentos que iluminam com luz forte o nosso presente", observando ser a obra :
"ainda capaz de nos fazer pensar, nos provocando com questões que, apesar das transformações ocorridas ao longo de todos esses anos, ainda permanecem dramaticamente atuais " (1987: 41)

E a também Uspiana Maria Odila Leite da Silva Dias num longo estudo, ao qual ela confere o significativo título de "Sérgio Buarque de Holanda, historiador " consegue, conjuntamente às observações da historiadora criteriosa sobre a obra de Sérgio Buarque, associar à esta a sua estatura de homem, a sua grande dignidade pessoal. O fato refere-se à aposentadoria de Sérgio quando professor do Departamento de História da USP, em protesto ao decreto do governo que em 1969 punia professores de várias universidades do Brasil.
Mas seria num ensaio de Luiz Antonio de Castro Santos, intitulado “O Espírito da Aldeia “ que se apresentaria uma das mais duras críticas a Gilberto Freyre e a sua obra como um todo, inclusive com extensões à sua história de vida. Neste ensaio, Santos compara a trajetória intelectual de Freire aos seus contemporâneos Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, desenvolvendo em relação ao primeiro a tese do narcisismo. O “modo de olhar” provinciano de Freyre, que Santos chama de “espírito da aldeia”, teria feito brotar no pernambucano uma admiração incontida pela vida intelectual das metrópoles internacionais, para depois produzir nele um comportamento defensivo e recolhido, de tipo narcisista, diante da “inferioridade” experimentada em relação àquelas metrópoles.
Se Sérgio Buarque (deixemos Caio Prado Júnior de lado... ), fundando-se na moderação de expectativas de prestígio internacional e na escolha estrategicamente bem sucedida de outros significados diferenciados – a comunidade estrangeira quanto à adoção dos cânones de trabalho científico, mas a comunidade intelectual brasileira quanto à difusão de suas obras, Freyre adota a comunidade internacional como grupo de referência nas duas situações descritas, ao que Santos acredita poder ser imputado às dificuldades com a crítica brasileira.
Freire utilizou para produzir Casa Grande&Senzala a Brasiliana da Universidade de Stanford (onde estivera como professor-visitante), completando com fontes nacionais do Arquivo Nacional, Faculdade de Medicina e Biblioteca Nacional. Para Santos, no entanto, o pensamento de Freyre “...feneceu e empanou-se a partir dos anos quarenta “, com seu retorno à Recife, onde orquestrou “um culto ao seu redor, a que sempre presidiu ‘contente e insaciável’ “.
Sérgio por sua vez construíra discreta e produtiva carreira nacional à frente de instituições como o Museu Paulista, ou na vida acadêmica como professor da USP a partir de 1956.
A década de 1980, uma década memorável para a produção histórica no Brasil assistiria o desaparecimento de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque. Este último terminaria seus dias na casa da rua Buri, no Pacaembu, São Paulo, onde morava há vários anos, cercado por seus familiares, seus muitos amigos, seus inúmeros livros. E na companhia de suas obras geniais, fruto de sua seriedade intelectual que conseguiu fazer dele um historiador profícuo até os últimos dias. Sérgio Buarque de Holanda, historiador, grafou Maria Odila Leite da Silva Dias. Talvez simples demais mas certamente ao gosto de um Sérgio Buarque que nunca fora afeito à pompas, e que divertia-se já historiador consagrado em ser “apenas o pai do Chico.”


BIBLIOGRAFIA:

AVELINO FILHO, George. As raízes de “raízes do Brasil”.
São Paulo. Novos Estudos CEBRAP. N.18, set 1987, p.33-41

CARDOSO, Fernando Henrique. Livros que inventaram o Brasil.
São Paulo. Novos Estudos CEBRAP. N.37, nov 1993, p.21-35

DIAS, Maria Odila Leite da Silva (0rg.). Sérgio Buarque de Holanda.
São Paulo: Ática, 1985.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande&Senzala. Rio de Janeiro: Record.
35 ed., 1992.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974).
São Paulo: Ática, 1977.

SANTOS, Luiz Antonio de Castro. O espírito da aldeia: orgulho ferido
vaidade na trajetória intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo: No
Vos estudos CEBRAP. N.27, jul 1990, p. 45 – 66

SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, mani
festos e textos críticos. São Paulo: Edusp, 1992.

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